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Beleza e arte contemporânea na concepção de Marko Ivan Rupnik
Por Pe Thiago Faccini
12/08/2020  15:17:51 - Atualizado: 12/08/2020  15:17:51

Wilma Steagall De Tommaso

Doutora em Ciências da Religião pela PUC-SP

1. Marko Ivan Rupnik

O religioso jesuíta e artista esloveno Marko Ivan Rupnik (Salloga d'Idria, 28 novembro de 1954) revela que a sua primeira inspiração é a Palavra de Deus e, como o artista sacro brasileiro Cláudio Pastro (1948-2016,), tem como guia principal na arte litúrgica o Concílio Vaticano II, que nos convida a reler aquele grande período que foi o Primeiro Milênio, a era patrística, e a procurar iluminação nos fortes períodos da arte dos cristãos, como o românico, o primeiro bizantino.

Marko Ivan Rupnik, S.J., é doutor em Teologia pela Pontifícia Universidade Gregoriana e autor de inúmeras obras iconográficas na Europa, entre as quais o desenho do logo do Ano de Misericórdia, convocado pelo Papa Francisco em 2015. Foi consultor do Conselho Pontifício para a Cultura e a Arte (1999-2013) e desde 2012 é consultor do Conselho Pontifício para a Nova Evangelização. Padre Rupnik, um dos artistas de arte sacra mais influentes da contemporaneidade, é atualmente diretor do Centro Aletti de Arte Espiritual em Roma. Entre suas obras se destacam a capela Redemptoris Mater, no Palácio Apostólico da cidade do Vaticano, encomendada por São João Paulo em 1996; o Santuário da Santíssima Trindade em Fátima, Portugal (2007); o Santuário de Lourdes na França (2007); a Igreja de Santo Padre Pio em San Giovanni Rotondo, Itália (2009); a Diocese de Castanhal no Pará (2014); o Santuário Nacional São João Paulo II em Washington DC, Estados Unidos (2015).

Em 19 de janeiro de 2019, o Santuário Nacional de Aparecida informou que, nesse ano, juntamente com os Missionários Redentoristas, dará início a um novo projeto: o revestimento das fachadas externas da Basílica com passagens bíblicas. O projeto foi estudado por quase dois anos pela administração do templo e será executado pelo padre Rupnik. Para a obra, o religioso utilizará a técnica dos mosaicos, uma de suas marcas registradas (1).

Rupnik considera que a cultura ocidental deu precedência à verdade e ao bem. “Certamente negligenciou o belo ao reduzi-lo a algo puramente decorativo e não absolutamente necessário como o verdadeiro e o bom”, afirmou em entrevista publicada no semanário “Igreja Viva”, suplemento do “Diário do Minho”, da arquidiocese de Braga (2).

O artista sacro e jesuíta é especialista nos pensadores russos do fim do século XIX e do século XX que refletiram, entre outros assuntos, sobre a beleza, como Vladimir Solov’ëv, Pavel Florenskij, Nicolas Berdiaev e Paul Evdokimov. Rupnik pesquisa há anos a beleza e o símbolo, e é um crítico da arte naturalista a partir do Renascimento.

2. Berdiaev e a crítica ao Renascimento

Como crítico do Renascimento italiano, o argumento forte do padre Rupnik é que o cristianismo surgiu na época da escultura clássica perfeita, porém, os cristãos não aceitaram essa arte. Nos primeiros séculos, por exemplo, não há na arte cristã nada similar à escultura grega e nenhum retrato idealizado, como havia nas formas tão difundidas na arte greco-romana. Suas colocações e justificativas a essa crítica da arte do Renascimento encontram respaldo também na obra de Nicolas Berdiaev.

Nicolas Berdiaev, filósofo da primeira metade do século XX, descreve seu pensamento, no final de sua vida, em seu Essai d’Autobiagraphie spirituelle, como um “humanismo religioso, humanismo teândrico”, considerando-se para além de um filósofo e o mais personalista. Berdiaev morreu em Clamart, próximo a Paris, em 1948, após vinte e quatro anos exilado de sua Rússia natal.

O nome do filósofo está associado tanto ao existencialismo na sua linha cristã, mais exatamente cristã da Igreja do Oriente, como ao personalismo, do qual Berdiaev foi um dos primeiros arautos. Para ele a liberdade, que nada mais é que o espírito, é o imperativo por excelência da humanidade. O homem que está condenado por sua natureza, que se pode qualificar, indiferentemente para ele, de livre, espiritual ou ainda pessoal, a ser divino-humano, na medida onde o espírito – ou a liberdade – é a imagem do Deus no homem. E o ser teândrico, esse homem semelhante a Deus, é a pessoa. O Cristo foi e é em toda eternidade a pessoa; Deus se fez homem, se fez carne, mas a humanidade inteira vem por Ele se fazer à sua semelhança, a se divinizar; o que para Berdiaev não é outra coisa senão se libertar, realizar sua liberdade espiritual. A segunda hipóstase trinitária é a pessoa, e é a razão pela qual Berdiaev escreveu que “a antropologia autêntica está contida na cristologia” (Berdiaev, Esprit et liberté, 1943).

Deus é como a vida em nós. Em Le nouveau Moyen Age, Berdiaev descreve sua descrença na dita “modernidade” e faz também uma crítica específica à arte do Renascimento.

Rupnik, em palestra na PUC-PR em setembro de 2017, sublinhava que a arte cristã começou nas catacumbas, no subsolo, lugar da morte, na contramão da arte clássica greco-romana da época, abandonando completamente a ideia de perfeição.

Ao basear sua crítica à arte do Renascimento na obra de Nicolas Berdiaev, o artista jesuíta entende que a arte cristã nasceu simbólica e deve ser simbólica (3).

Para o filósofo Berdiaev, confrontando com a questão “O que caracterizava essa modernidade?”, a característica fundamental sob o aspecto espiritual foi o malefício vindo a partir do Renascimento, quando o cristianismo passa a conviver com o paganismo que fora rejeitado pelos primeiros cristãos; a tentativa de fazer coexistir a Cristandade e Antiguidade pagã, fazer uma relação entre essas duas realidades.

Tomar da Antiguidade a forma da beleza antiga clássica e colocar no conteúdo do Mistério cristão foi uma tentativa suicida, segundo Berdiaev, porque nada de verdadeiramente clássico e perfeitamente completo e realizado sobre a terra é possível no mundo cristão. Nada de perfeitamente clássico, de verdadeiramente perfeito como forma é possível ao interior do mundo cristão, por óbvios motivos:

1) porque a realização do homem no Filho de Deus e verdadeiro Homem, veio de um modo pascal, em um drama, em um martírio, em um corpo desfigurado, em forma de crime, de massacre, numa tragédia.

2) e porque a realização não pertence a este mundo, mas ao Escathon. Não se pode, com fantasia, atingir as formas clássicas da perfeição formal para interpretar a perfeição escatológica. Para Berdiaev essa é uma operação puramente fantasiosa, de total falta de senso da verdade, porque a escatologia não consiste na perfeição da carne, mas na perfeição da pessoa, na koinonia (comunhão), na Igreja levada à salvação na comunhão da vida Trinitária. Em nenhuma obra podemos ler a frescura da vida nova porque esta é prejudicada. Não é possível fazer tal relação. O homem não precisa mais buscar a Deus, pois Deus se fez Homem. A união divino-humana se faz em Cristo, não há mais nada a se indagar no campo religioso, há uma religião como união, eu e Deus, isto é absolutamente resolvido em uma união livre entre Deus e o homem.

A arte sacra, serviço litúrgico, expressa a espiritualidade, diz respeito a conteúdos como a transfiguração da humanidade sob a ação do Espírito Santo, o conhecimento experiencial do Pai, a sinergia com o Espírito Santo na filiação e na transfiguração da humanidade e do mundo. Também a experiência da realização no Escathon, a cada eucaristia há uma experiência da escatologia, da praça de ouro, do Corpo de Cristo, da eclesialização da vida (4).

Uma arte totalmente antropocêntrica, idealista, como a renascentista, o barroco e a neoclássica, não pode exprimir nada disso. Em consequência, não se encontram nesses dois últimos séculos igrejas dedicadas à Transfiguração, nem cenas da Transfiguração. Segundo Rupnik, isso se dá porque na própria teologia católica desapareceu o conceito de transfiguração assim como o da divino-humanidade. Esta só existe em Jesus Cristo, Pessoa divina que como tal une a humanidade e a divindade de modo livre e agápico. A divino-humanidade demanda a experiência e para isso é preciso estar em Cristo, só assim se pode experimentar a divino-humanidade que dá acesso à redenção (5).

O mesmo vale para a representação da Ressurreição. Ninguém jamais viu Cristo sair do sepulcro, mas seguindo a um desaparecimento do horizonte trinitário da teologia, quando toda a espiritualidade se concentra em Cristo, representa-se o Cristo que sai da tumba, mas é o Pai quem ressuscita o Filho. Quando o humanismo basta e a divindade é vista como inimiga, Cristo sai por si só do sepulcro, mas isso é uma falsidade teológica, reafirma Rupnik.

Para Berdiaev necessita-se de uma escatologia cristã. Ela será oferecida com base no entendimento de que há duas maneiras de se compreender o Apocalipse: uma passiva e outra ativa. A primeira é a mais comum na história da consciência cristã. Trata-se de esperar passivamente o fim do mundo, que deve ser obra e julgamento de Deus. Por sua vez, a forma ativa de se compreender o Apocalipse significa que o “fim do mundo pode ser ativamente preparado pelo homem, depende também da atividade humana, quer dizer, é uma obra teo-antrópica” (BERDIAEV, 1946, De l’esclavage, p. 295).

Para Paul Evdokimov (1901-1970), discípulo de Berdiaev, o homem nunca é um meio para Deus. Se a existência do homem pressupõe a existência de Deus, a existência de Deus pressupõe a do homem. A pessoa humana é um valor absoluto para Deus, ela é seu “outro” e seu “amigo”, de quem Deus espera uma livre resposta de amor e criação. A solução é teândrica: “a coincidência dos dois Pleromas em Cristo”. “Nós somos cooperadores [synergoi] de Deus” (1Cor 3:9). Trata-se de uma sinergia criadora divino-humana. É porque o homem escatológico não vive uma espera passiva, mas a preparação mais ativa da Parúsia (6).

3. A beleza

Falar de beleza hoje é moda, mas o idealismo, o romantismo e a cosmética dos nossos dias tornaram a beleza um estereótipo que a priva de seu significado teológico, reduzindo-a sob o aspecto que não lhe dá a visão integral.

Ao citar Vladimir Solov’ëv, pensador russo que muito escreveu sobre a beleza, em seu artigo Via della bellezza, sapienza di vita (7), Rupnik expõe um breve resumo sobre como Solov’ëv a compreende. O filósofo define a beleza como uma sinergia, uma interação entre a matéria e a luz. Sem a luz a matéria não é bela e, analogamente, também a luz, sem a resistência da matéria, não é bela. Solov’ëv constata isso através do exemplo do carbono e do diamante. Por sua composição química, o diamante é idêntico ao carbono, no entanto o último sufoca a luz, o diamante a faz refletir. Do ponto de vista físico, a estrutura do carbono restringe a luz, no entanto, o diamante a acolhe e a remete multiplicada, ou seja, o diamante aumenta a potência da luz na matéria.

As paredes dos edifícios religiosos sempre foram a tela sobre a qual a Igreja pintou seu autorretrato. No livro “L’autoritratto della Chiesa”(8), Marko Rupnik relê o autorretrato à luz da beleza e da arte. Um breve resumo dessa obra é relevante para se compreender a arte do padre mosaicista Marko Rupnik.

4. “L’autoritratto della Chiesa”, breve resumo

Da beleza se perdeu o significado e ela foi conscientemente destruída com a filosofia idealista e com o romantismo, iniciando, segundo o autor, uma deliberada operação de destruição da beleza que está radicalmente unida ao cristianismo. Não se pode destruir o cristianismo sem destruir a beleza (9).

Atualmente, não é evidente a relação entre arte e beleza. A teologia se prendeu à ética, à moral e ao bem, porém, temos uma Igreja que é boa, só faz o bem, mas não atrai nem fascina ninguém, pois só uma Igreja bela se faz enamorar.

 A melhor síntese na visão de Rupnik foi feita por dois russos: Vladimir Solov’ëv e Pavel Florenskij. Solov’ëv sustenta que um bem que não se torna beleza é um perigo para o homem, e constatamos isso continuamente: não existe sofrimento maior quando alguém em nome de uma ideia de bem o imponha a todos. É a ditadura do bem, suprema expressão do mal. O bem que não se torna beleza se torna um fanatismo, destrói o homem, é um monstro. Em nome da verdade foram cortadas muitas cabeças, com a bandeira de ideia humanista, a época moderna assassinou milhões de pessoas.

Solov’ëv afirma que a ideia que não é capaz de encarnar-se como beleza demonstra sua impotência. A beleza é a carne do bem e da verdade, e isso é uma coisa extraordinária. O bem verdadeiro precisa se manifestar como beleza. Diz Rupnik que seu pai afirmava sempre que, se é verdade algo que alguém lhe diz, isso poderá se saber se for dito com amor e quando o disser seu coração vai experimentar uma relação bela com essa pessoa. Se quando afirmamos uma coisa, não deixamos transparecer a beleza de uma relação, o que dizemos é fruto de uma paixão, de uma ideologia, e não exprime a verdade. Para Solov’ëv, “um conteúdo ideal que permaneça unicamente uma propriedade interior do espirito, da sua vontade e do seu pensamento, falta a beleza, e a ausência da beleza significa impotência da ideia”. Por isso, para ele, a beleza é “a encarnação em forma sensível do mesmo conteúdo ideal que antes de tal encarnação se chamava bem e verdade”.

“O bem e a verdade para realizar-se devem se tornar no sujeito uma força criadora capaz de transfigurar a realidade, e não apena refleti-la”. Segundo Rupnik, o padre e mártir Pavel Florenskij fez aqui a melhor síntese da beleza: “a Verdade manifestada é o amor – Cristo – o amor realizado é a beleza. A beleza realizada é a manifestação da verdade como amor (10)”. A Igreja é bela porque é a comunhão das pessoas, diz Florenskij. Se não existe a beleza da relação, não existe a verdade. A verdade é o amor — Cristo — o amor realizado é a beleza . A beleza é a manifestação da verdade da verdade como amor. Se é assim, a beleza é uma comunicação teúrgica, quando a verdade se revela como amor e o amor transfigura. Quando se comunica, a beleza transfigura a realidade através da qual se comunica, por isso na verdade que o outro me diz sou transfigurado e ele também”.

A beleza é inseparável da comunicação e a única verdadeira comunicadora, pois há alguém para comunicar, Deus Pai.

A beleza aprende de Deus Pai, o artista aprende de Deus Pai. E Deus Pai se comunicou através do Filho, através de uma pessoa. Ideias não se comunicam.

Se a verdade não pode ser revelada como amor, é um ídolo. Para comunicar é preciso a pessoa. Cristo comunicou o Pai e não apenas em discursos, mas na sua carne, no seu corpo, e para isso quis o Espírito Santo, o supremo comunicador do Pai. O corpo do Cristo é uma figura, e a arte figurativa é aquela que vai até o céu, porque a carne se torna carne espiritual.

Cristo não comunicou o Pai em uma forma fixa, clássica, perfeita como a do Renascimento, nem em um niilismo expressionista violento, de denúncia, do mal e de coração partido. Cristo é o mais belo e o mais feio, tão feio que faz virar o rosto porque não se podia olhar, segundo as Escrituras (cf. Is 52:14).

No Antigo Testamento há o interdito de fazer a imagem de Deus, pois Ele reservou esse privilégio único para esculpir sua verdadeira imagem na carne do Filho. O Deus que veneramos nós o esculpimos com o nosso pecado. A maior obra de arte feita pelo homem é a paixão de Cristo até seu corpo ressurreto.

Se o Pai o ressuscitou da morte, poderia curar-lhe as cicatrizes, mas elas permaneceram pois por causa delas Cristo foi reconhecido apos a Ressurreição. A realização do amor pelo Filho se dá no Tríduo pascal, por isso a beleza é pascal.

Rupnik não acredita que os Pais da Igreja fossem menos inteligentes que os teólogos dos últimos cinquenta anos, pois eles não se deixaram fascinar nem enganar pela forma clássica.

5. O símbolo

O desenvolvimento da arte propriamente cristã, durante os primeiros séculos do cristianismo, aconteceu de maneira muito lenta. As paredes das catacumbas foram marcadas por grafites, esboços, signos e símbolos pelos iniciados. Muitos símbolos pagãos ganharam uma nova significação, mais profunda. O jardim, a palmeira e o pavão designam o paraíso terrestre; o barco, símbolo da prosperidade e de uma feliz travessia, torna-se a Igreja; e a entrada do navio em um porto não significa mais a morte, mas a paz eterna; o tema erótico de Eros e Psique passa a significar a sede da alma e o amor de Deus em Jesus Cristo; Hermes, símbolo da humanidade, representa o Bom Pastor. Esses símbolos são o reflexo do ensinamento das verdades da fé. Por eles, os fiéis são conduzidos para um conhecimento mais profundo do cristianismo (11).

Houve também símbolos que foram inspirados no Antigo Testamento, como Daniel na cova dos leões, os três jovens na fornalha, Adão e Eva, e outros novos, criados desde o século II, que são símbolos tipicamente cristãos: a multiplicação dos pães, representando o Banquete Eucarístico; a adoração dos magos, símbolo da admissão dos pagãos à fé cristã; a ressurreição de Lázaro e, enfim, os símbolos secretos, incompreensíveis aos pagãos, como a vinha, mistério da vida em Deus nos batizados, e o peixe, ichthy (12), acrônimo de Cristo – Jesus Cristo Filho de Deus Salvador (13).

Esses signos são encontrados, sem mudança de estilo e de tema, na Espanha, na Ásia Menor, da África até o Reno. As pinturas são sumárias: alguns traços em uma estrita gama de cores. Não são imagens cultuais. A Igreja não impõe um programa. Elas são lembranças dos momentos do Cristo ou da Virgem, são seus retratos (14). Como diz Evdokimov, nas catacumbas encontra-se uma arte puramente significativa, cujo fim é didático: proclama a salvação e traça seus instrumentos por meio de signos decifráveis. Em suas palavras:

"Podem ser classificados em três grupos: 1) tudo o que se refere a água: a arca de Noé, Jonas, o peixe, a âncora; 2) tudo o que se relaciona com o pão e o vinho: a multiplicação dos pães, o trigo, a vinha; 3) tudo o que diz respeito à salvação e aos que foram salvos: os três jovens na fornalha, Daniel entre os leões, o pássaro fênix, Lázaro ressuscitado, o Bom Pastor. [...] Observa-se maior negligência na forma artística e ausência de um desenvolvimento teológico. O Bom Pastor não representa o Cristo histórico, mas quer dizer: o Salvador salva realmente" (15).

A iconografia do espaço sagrado revela a grandeza do mistério celebrado nesse lugar. A arte sacra é o prolongamento do Mistério da Encarnação, da descida do Divino no humano, arte que tem valor sacramental e é simbólica, isto é, sinal de união.

O termo símbolo é perigosamente polissêmico. Etimologicamente, símbolo vem do grego sýmbolon, do verbo symbállein, significando “lançar junto”, jogar ao mesmo tempo, “com-jogar.” A princípio, é um sinal de reconhecimento: um objeto dividido em duas partes, cujo ajuste e confronto permitiam aos portadores de cada uma delas se reconhecerem. O símbolo é, então, a expressão de um conceito de ambivalência. Por extensão, é chamado símbolo toda realidade aparente que reenvia a uma realidade oculta à qual está ligada pela forma. Porém, no cristianismo tudo foi manifestado. Deus, ele mesmo, revelou-se, mostrou-se pela Encarnação, a realidade derradeira. Deus criador não está mais oculto, mas se manifestou de maneira total se abandonando nas mãos dos homens. Logo, não haveria um símbolo cristão no sentido estrito da palavra símbolo, isto é, de forma a remeter por analogia ou semelhança a uma realidade oculta. A teologia do ícone concluiu, rapidamente, a necessidade de uma representação direta do Cristo, ou seja, em seu aspecto humano, mas com formas simbólicas (16).

Com o auxílio desta arte, os primeiros cristãos se esforçaram para transmitir não apenas o que é visível aos olhos, mas o que é invisível, ou seja, o conteúdo espiritual do representado. A igreja primitiva se serviu igualmente de símbolos pagãos e também de alguns da mitologia greco-romana. A fim de melhor fazer conhecer seu ensinamento àqueles que se convertiam do paganismo, a Igreja utilizava certos mitos antigos que de alguma maneira serviam de paralelo ao cristianismo. Paul Evdokimov elucida sobre a visão ortodoxa da origem pagã da arte cristã:

"Tudo converge para um único apelo: de que não há vida eterna fora do Cristo e de seus sacramentos. Tudo se reduz a um único sinal e tudo é alegria, pois a ressurreição dos mortos se inscreve nos sarcófagos (comedores de carne). A ausência de toda arte marca aqui o momento decisivo do próprio destino dessa arte: seu ponto alto, ainda próximo, a alta criação da Antiguidade é inútil para o momento; passa por sua própria morte e emerge das águas do batismo, que significam e consignam os grafites das catacumbas, para sair das fontes batismais à aurora do século IV sob a forma – jamais vista anteriormente – do ícone. É a arte ressuscitada em Cristo: nem signo, nem quadro, mas ícone: símbolo da presença e seu lugar fulgurante, visão litúrgica do mistério feito imagem" (17).

Uma forma sensível pode retratar uma verdade ou uma realidade que transcende, por sua vez, o plano das formas sensíveis e do pensamento. Observa Nars que o mundo das formas artísticas e o mundo das formas reais aparecem como uma teofania, uma manifestação do real sem forma, portanto, é o mundo das transparências. É a visão espiritual do mundo onde a beleza de uma coisa não é mais do que a transparência dos seus envoltórios existenciais, a verdadeira arte é bela porque é verdadeira. Uma arte é sacra porque tem sua raiz no eterno, o sagrado não é outra coisa que a manifestação do eterno no temporal ou do centro na circunferência, na roda da existência (18).

Neste sentido, a arte sacra é uma arte mística e litúrgica, isto é, centrada no dogma e no culto. É uma arte cuja característica essencial é ser unitiva, isto é, símbolo, palavra feita imagem, linguagem, na relação do divino com o humano. Burckhardt, a partir de Coomaraswamy (19), aponta que um símbolo não é simplesmente um signo convencional, mas sim que:

"[...] ele manifesta seu arquétipo em virtude de uma lei ontológica definida, um símbolo é, de certo modo, aquilo que ele exprime. Por essa razão, o simbolismo tradicional nunca é desprovido de beleza: de acordo com a visão espiritual do mundo, a beleza não é senão a transparência de seus envoltórios ou véus existenciais; em uma arte autêntica, uma obra é bela porque é verdadeira" (20).

A realidade simbólica, uma realidade em que estão unidos de modo invisível dois mundos, o divino e o humano, o eterno e o temporal, o incriado e o criado. E as colunas dessa unidade, a criação e a redenção fazem com que possamos nos purificar sempre e que possamos voltar a uma estrutura mental por si só intrínseca à mesmo vida que recebemos. O que nos trai e desvela que nossa mentalidade não é assim é exatamente a ausência da beleza, signo da ausência do amor, nos adverte Rupnik (21).

No pensamento do padre Rupnik, no último século de globalização religiosa os cristãos perderam a fé e voltaram a ser uma religião de normas e regras, perdeu-se a dimensão da divino-humanidade. Sem a fé há um retrocesso, torna-se uma ideologia religiosa da qual o homem quer libertar-se. Houve uma atração pela forma perfeita, e a partir do Renascimento a Igreja produziu uma arte que não compreende a divino-humanidade.

O símbolo para os cristãos está fundamentado no Cristo: “quem vê a mim, vê o Pai”. O símbolo se aproxima àquilo que os cristãos encontraram em Cristo e que depois passaram nos sacramentos, que pressupõe a existência de dois mundos e constitui a ponte que une esses dois mundos. É a unidade, a revelação.

6. Considerações finais

Na concepção de Marko Rupnik a fonte da criatividade na arte litúrgica é única, o Espírito Santo. Só nesse processo de inspiração o artista revelará em sua obra a beleza simbólica pois, a obra será correalizada.

A forma clássica não pode mostrar a Páscoa e, se não pode retratar a Páscoa, é incompatível com o amor de Deus Pai. Se um amor não é pascal, é um amor pagão. Pensar que amarei sem pagar pela pessoa, significa ser um grande idealista pagão, porque a beleza é pascal. Por isso na arte não se pode pensar em criar sem o martírio da arte e do artista. Só assim podemos tornar à arte, à grande arte que exprime o amor e se realiza através da divino-humanidade.

Para isso, há que se pedir ao Espirito Santo, o único que pode acionar o Filho. Nós não podemos nos tornar filhos de Deus sozinhos, não podemos viver um amor pascal à parte do Cristo, mas apenas enquanto parte d’Ele. E isso vale também para o artista. Nesse sentido, pode-se dizer que a beleza realizando-se transfigura a própria pessoa e a vida dessa pessoa. Se uma mãe se santifica amando, se um pai se santifica amando, um artista se santificará do mesmo modo.

É totalmente inútil exaltar uma arte se não é santificado aquele que a fez. Santificar-se significa consumar-se: “esta é para mim a arte da vida, a arte que se torna beleza”.

Essa é a missão do artista sacro, revelar a beleza divina nas paredes das igrejas, transfigurar o mundo, mas sem o símbolo e a beleza pascal isso não é possível. O amor tem sempre um rosto, é sempre pessoal.

Rupnik insiste que não se entra na Igreja com um bilhete, mas pelo Batismo, morte do homem velho e ressureição do novo homem. Cita São João Paulo II: “o caminho é a cura pastoral espiritual dos artistas (22)”.

Bibliografia

BERDIAEV Nicolas, Le Nouveau Moyen Age, L’Age d’homme, 2010.

BERDIAEV, Nicolas. De l’esclavage et de la liberté de l’homme. Trad. S. Jankelevitch. Paris: Aubier, 1946.

BERDIAEV, Nicolas. Espirit et realité. Paris: Aubier-Montaigne, 1943.

BESANÇON, Alain. L’image interdite: une histoire intellectuelle de l’iconoclasme. Collections folio essais. Paris: Gallimard, 2000.

BÍBLIA DE JERUSALÉM. 9. ed. São Paulo: Paulus, 1993.


BURCKHARDT, Titus. A arte sagrada no Oriente e no Ocidente. São Paulo: Attar Editorial, 2004.

EVDOKIMOV, Paul. L’art de l’icône: théologie de la beauté. Paris: Desclée de Brouwer, 1972.

RUPNIK, Marko Ivan. L’autoritratto della chiesa, arte, bellezza e spiritualità. Bologna. EDB Lampi, Centro Editoriale Dehoniano, 2015.

RUPNIK, Marko Ivan. Via della bellezza sapienza di vita. Museu della Basilica, Santa Maria delle Grazie, Quaderni 5. Firenze. Edizione Feeria, 2007.

SERS, Philippe. Icônes et saintes Images: la répresentation de la Transcendence. Paris: Les Belles Lettres, 2002.

(1) Disponível em: https://www.acidigital.com/noticias/fachadas-da-basilica-de-aparecida-serao-revestidas-com-passagens-biblicas-36350 Acessado em 28 de fev. de 2019.

(2) Disponível em: http://www.snpcultura.org/cultura_ocidental_negligenciou_o_belo_marko_rupnik.html. Acessado em 12 de jul. de 2018.

(3) 11º Encontro Nacional de Arquitetura e Arte Sacra, realizado em Curitiba pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR). Segunda palestra do dia 20 de set. de 2017.

(4) Cf. Marko Ivan Rupnik. L’autoritratto della chiesa, arte, bellezza, spiritualità. EDB Lampi, Centro Editoriale Dehoniano, Bologna, 2015, p. 35-36.

(5) Cf. Ibid. p. 36.

(6) Cf. EVDOKIMOV, Paul. L’art de l’icône: théologie de la beauté. Paris: Desclée de Brower, 1972. p 59.

(7) Marko Ivan Rupnik. Via della bellezza, sapienza di vita. Museo della basílica Maria SS. delle Grazie, quaderni 5. Edizione Feeria, comunità di San Leolino, Firenze, 2007, p 13-14.

(8) Marko Ivan Rupnik. L’autoritratto della chiesa, arte, bellezza e spiritualità. Bologna. EDB Lampi, Centro Editoriale Dehoniano, 2015.

(9) Marko Ivan Rupnik. L’autoritratto della chiesa, arte, bellezza e spiritualità. Bologna. EDB Lampi, Centro Editoriale Dehoniano, 2015, p. 17.

(10) Cf. Marko Ivan Rupnik. Via della bellezza sapienza di vita. Museo della Basilica, Santa Maria delle Grazie, Quaderni 5. Firenze: Edizione Feeria, 2007, p. 19.

(11) Cf. Alain BESANÇON, L’image interdite: une histoire intellectuelle de l’iconoclasme, p. 206-207.

(12) Do grego ΙΧΘϒΣ: Iésous Chistós Théou Yós Sóter.

(13) Cf. Alain BESANÇON, L’image interdite: une histoire intellectuelle de l’iconoclasme, p. 206-207.

(14) Cf. Alain BESANÇON, L’image interdite: une histoire intellectuelle de l’iconoclasme, p. 206-207.

(15) Paul EVDOKIMOV, L’art de l’icône: théologie de la beauté, p. 149.

(16) Cf. Philippe SERS, Icônes et saints images: la représentation de la Transcendance, p. 47-48.

(17)  Paul EVDOKIMOV, L’art de l’icône : théologie de la beauté, p. 150.

(18) Cf. Titus BURCKHARDT, A arte sagrada no Oriente e no Ocidente, Prefácio de Seyyed Hossein Nars, p. 14.

(19)  Ananda K. Coomaraswamy (1877-1948), historiador da arte e pensador indiano, contribuiu na descoberta e compreensão da cultura indiana no Ocidente. (N.A).

(20) Cf. Titus BURCKHARDT, A arte sagrada no Oriente e no Ocidente, p. 19.

(21) Marko RUPNIK. La vida segun el Espiritu y la formación permanente - visión teológico spiritual de la formación. http://www2.ofmconv.pcn.net/assemblea2010/documenti/rupnik/marco rupnik - es.pdf, p 4 -5. Acessado em 2 de fev. de 2019.

(22) Cf. Marko Ivan Rupnik. L’autoritratto della chiesa, arte, bellezza e spiritualità. Bologna. EDB Lampi, Centro Editoriale Dehoniano, 2015, p. 46.